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Opinião

07/09/2022

Nos tempos do Duque

 

Minhas primeiras experiências escolares de verdade aconteceram na Escola Estadual Duque de Caxias. Antes, eu frequentei aleatoriamente um corredor improvisado como sala de aula no grupo escolar da Ilha de Santana; muito mais porque Mainha trabalhava lá (era num quartinho improvisado na escola que funcionava o “posto de saúde” da comunidade, à época, e eu ficava no meio dos alunos enquanto minha mãe dava expediente).

Mas escola, escola mesmo, a primeira foi o Duque, como até hoje é chamada a querida escola, que até ameaçada de fechamento já foi. Lembro que minha mãe relatava com orgulho e olhar distante e saudoso, num passado mais passado que o meu, um quase pretérito mais que perfeito, como era a estrutura do prédio. Contava também do uniforme, das regras...

Eu já alcancei a arquitetura que resiste ainda hoje. O recorte espacial onde está o Duque é, para mim, um dos mais belos espaços geográficos de Macau: na fronteira das ruas Augusto Severo com Barão do Rio Branco, em frente à “Miscelânea Vásquez”, pertinho de Chico do chinelo, tendo como retaguarda a rua da maré e vizinho ao Banco do Brasil.

Seu Manezinho, proprietário da “Miscelânea”, hoje esposo de minha tia, foi muitas vezes visitado por mim, ávida de canetinhas coloridas pelikan, borrachas cheirosas e outras coisinhas de menina de primário, como era denominado o hoje Ensino Fundamental I. Sim, eu estudei no Duque.  Lembro-me da primeira vez que uma colega me convidou a explorar o corredor – gigante para o meu tamanho – que havia por trás das salas. Qualquer novo território era matéria do meu interesse! Eu me lembro de D. Zulmira e da sopa de feijão servida na hora do recreio; lembro-me de duas colegas de sala: Maria Simão e Ane Késsia, essa última filha de S. Sebastião dos Correios, figura boníssima que viveu em Macau e de quem minha mãe adquiriu uma cozinha de segunda mão.

Lembro-me, de igual modo,  das tias Mônica, Denise, Navegante, Socorro. Os rostos e nomes dos colegas aparecem enevoados na memória, porque as fotografias das paisagens são imperativas, sobressaem-se ante às demais, subjugam rostos e abafam vozes. Contudo, são impotentes em aplacar lembranças afetivas. Cá estão elas, agarradas no barril das emoções.

Ao fim das aulas, fins de tarde, dois programas eram altamente excitantes para os nossos corações infantis e incautos: correr para a maré, molhar os pés perto da rampa, olhando para o fundo, lá para a boca da “camboa”, por certo corruptela de “gamboa”, que desconhecíamos.  O outro era explorar o antigo prédio da Rua Martins Ferreira, quase chegando à Praça da Conceição, o qual julgávamos “mal-assombrado” e escondia uma caveira pendurada no andar de cima... aproveitávamos uma brecha no portão e apostávamos quem subia mais degraus, invadindo mesmo a propriedade... depois íamos para casa, satisfeitos, sorridentes, suados, extasiados...

Foi nessa época, o tempo do Duque, que conheci o picolé Chicabon, pequeno mimo que me ofertava vez por outra o amigo Sandro Moretti, lá nas bandas do Alfredão.  Mas nada era tão imenso, tão amplo, quanto a avenida, o beco que havia por trás das salas do Duque.  Como era bom correr e correr, circundando salas e beco, salas e beco, depois frente e pátio; mais tarde, maré, prédio assombrado, caveira...

Confesso que há anos não entro no Duque: tenho medo de descobrir que o imenso corredor é, na verdade, um bequinho, e não mais aquela alameda onde eu derramava meus sonhos de menina meio menino – cabelos assanhados, respostas prontas e olhos curiosos, brincadeiras masculinas –  descreviam-me assim...  sempre guache!

O Duque me lembra a maré; a maré me lembra o mar; o mar me reporta a Gilberto:

“Esta é a noite em que mais me acresço

em  ternura, alumbramento e sossegos,

eis que colho das levadas a solidão

das águas e os cantos do meu mar antigo.”

(Gilberto Avelino)

 

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