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Opinião

07/10/2022

Cheiros do sal

As sinestesias habitam minha vida desde sempre. Apresentam-se numa combinação de luz, cores e cheiros. Alguns aromas tomam formas concretas no meu labirinto particular, etéreas que são. Assim, os cheiros do meu chão assumem formas, cores e sabores. Como os da minha infância.

 

Ainda bem pequena, no que foi um dia um distrito rural e bucólico, recortes da minha infância na casa de vovó Adalgiza tinham gosto de chá de capim santo e brote seco, uma espécie de bolacha redonda, branca e aguada. Felizes as tardes em que comíamos pão doce com coco, que Bastiãozinho passava a vender, num balaio frontal de bicicleta. Por vezes, por pura astúcia, comíamos fuba de milho torradinha ou farinha com açúcar. Em outras tardes, o lanche vespertino era chapéu de couro, com muito óleo escorrendo pelas mãos e canto da boca.

 

Na cozinha da estranha arquitetura à esquina da Princesa Isabel, lembro-me de um dos jantares mais deliciosos que experimentei: Nescafé com pão francês e manteiga. Eu já tinha comido isso antes, mas o daquele dia foi tão marcante que até hoje sinto o gosto na boca da lembrança.

 

Minhas tardes na praça da Bíblia eram guarnecidas pela pipoca de S. Chico. Lembro-me muito de nós sentados no banco onde ele estacionava seu carrinho, as chamas vermelhas, a velha panela de alumínio amassada e muito areada. Fingindo inocência, ao saber que eu não tinha moedas pra comprar, me oferecia um saco de pipocas quentinhas, dizendo: pegue um pouquinho de torreiro. Eu devorava aquelas flores salgadas, recentemente desabrochadas em óleo quente e sal. Depois, abastecida de pipoca e afeto de S. Chico, subia para o meu castelo de Greyskull, para virar heroína e enfrentar os vilões.

 

Nesse tempo, eu já conhecia as cocadas de Maria de Juju. Eram escuras, gosto de coco queimado, macias. Nunca mais na vida vi cocadas assim. Era um deleite. Cheirosas, bonitas, festivas como é quem as criou. Eu confundia, na mente e no coração, as cocadas com a imagem de Maria de Juju, enfeitada, majestosa e foliã no bloco da Vitória.

 

Outro sabor inesquecível, até hoje, eram as iguarias de S. Tino. Lembro-me da imagem de um senhor de camisa clara de botão, bermuda jeans e dentadura ostentando um detalhe de metal brilhoso. Ele exibia uma limpeza, uma assepsia, inclusive, no limpíssimo pano de prato que cobria o balde de alumínio. Não imagino sensação mais incrível que retirar aquele pano e me deparar com as roscas, raivas e cocorotes. Há dias em que chego a salivar, desejando, ainda que uma única vez, comer aquela rosca salgada e tão cheia de sabor infantil.

 

Poderia, ainda, trazer à memória a primeira vez que chupei um picolé “de marca”, que não fossem aqueles feitos de “ki-suco”. Quem me apresentou ao Chicabon foi o amigo Sandro Moretti no extinto Alfredão. De igual modo, me lembro do bauru da lanchonete Sertaneja, esquina da Pereira Carneiro, pertinho da Prolar, cujos proprietários tinham mesa e cadeira cativas, não permitindo aos clientes ocuparem aquele lugar marcado...

Os sorvetes de S. Edgar e Dora. A pizza do Chaplin. O lanche de Alessandro Castelo. Os sanduíches de Condinho e Marcos. Esses não me conotam tanta nostalgia, mas compunham o menu de outros tempos. Sabores, cores, falares, dores, risos, quedas, saltos. Uma gourmeria vanguardista de guloseimas, ora salgadas, ora doces.

 

Hoje, eu também carrego o gosto ácido das rosas de sal do istmo. Mas, lá no céu da boca, residem e resistem a rosca de S. Tino, as cocadas de Maria de Juju e a pipoca de S. Chico. Pra sempre.

 

 

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